Irmã Morte
Postado em 23 Sep 2016 01 45 Textos Anteriores











"Quem venceu o medo  
da morte, venceu todos   
os outros medos"  
                          - Gandhi  




por JOMAR MORAIS


Um mergulho, apenas um mergulho e aquilo que nomeamos vida desaparece. Um só mergulho e, em segundos, as paredes de nossa fortaleza implodem e nossa história é arrastada pela correnteza do rio. Lá se vão nossa glória, nosso talento, nossas posses, nossos desejos, nossos planos, nosso futuro imaginado. Lá se vão, rio abaixo, até se dissolverem nas águas contínuas do universo. 

É a morte. Universal e inevitável. Democrática e pontual. Serena e tranquila, mesmo sob os apupos e fúria de quem não suporta a sua face.

A morte do ator Domingos Montagner - prematura, segundo aquilo que consideramos normal para a trajetória do homem na Terra - náo apenas levou dor e pesar aos  familiares do artista, mas também abalou o país, fazendo-nos refletir sobre a Indesejada. 

Talvez seja esse o detalhe mais positivo - sim, eles também existem nos piores momentos - da morte repentina de pessoas famosas e talentosas. Ela nos chacoalha, despertando-nos momentaneamente das ilusões para encararmos a maior das realidades: todos morremos.

Não há condenação nesse fato da existência, como costumamos admitir a partir de nosso apego à própria identidade e aos eventos efêmeros que a constituem. No momento da criação, conforme a simbologia bíblica, Deus criou o Anjo da Morte e "viu que era bom". Morte e vida são faces da mesma moeda. É a morte que torna fresco o viver, a tudo renovando na esteira da vida.

Do ponto de vista da consciência, a morte é o encontro com a Verdade. Seria um momento precioso para realizarmos a entrega de nós mesmos, tantas vezes evitada em meio aos jogos e ilusões do dia a dia, mas, mesmo assim, insistimos em não abrir mão do controle. Preferimos gritar, espernear, reagir com desespero e ridículo ou tentamos escapar do medo, mantendo-nos na ilusão do controle através de conceitos pessimistas ou otimistas sobre o fenômeno.

Como diria o rabino Nilton Bonder, "a vida e a morte se beijam como a Verdade e o Amor". Enquanto vivemos, morremos a cada dia, nossas células morrem e se renovam.  E para que vivamos bem, saudáveis, é necessário que nossas células saibam morrer e se reciclar. A morte e a vida são parceiras, não adversárias.

A impermanência é uma lei do universo. Tudo passa. Bastará compreender essa verdade para entendermos a morte e, mais que isso, acolhê-la.

Francisco de Assis, o santo cristão que mais percebeu e compreendeu a unidade do universo (hoje, ele é o padroeiro da Ecologia!), chamou a Indesejada de Irmã Morte. Ele, que nivelou todos os seres na fraternidade  (Irmão Lobo, Irmão Ladrão, Irmão Leproso...), soube identificar na morte uma companheira que abre as portas para a renovação, para outras dimensões de vida.

Em nosso mundo, que teme a morte ao ponto de excluí-la das conversas, a recordação de Francisco celebrando a sua própria passagem é emblemática. Os frades choravam ao vê-lo no chão, coberto de chagas, dores e ratos, mas Francisco os fez cantar e reafirmar os seus votos. E disso tiramos uma lição: o amor, que deixa a consciência tranquila, é o melhor caminho para que compreendamos e nos confraternizemos com a morte, nossa irmã. 

[ Publicado na edição do Novo Jornal de 20/09/16 ]


Assista aos vídeos da TV Sapiens >>>  www.youtube.com/sapiensnatal

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jorge brauna
30 Sep 2016 21 15
Estes dias eu estava pensando sobre a impermanência...grato pela consoladora reflexão, Jomar.
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