Postado em 04 Sep 2015 06 27 Cultura Popular
Esta é uma história que meu avô Chico Benedito contava (e que meu pai José Benedito transcreveu) que se transformará no instrumental "campos grandes reunidos" que dará nome ao meu novo disco. Essa faixa deve começar com uns passos e sons da natureza, depois entra o piano e mais à frente um solo de guitarra, com bateria e baixo. Essa história meu avô contava e dizia que já tinha aprendido de outra pessoa. Enfim, um história oral passada de geração a geração. O que é interessante é que não achei nada parecido no google, principalmente esse refrão: "campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes para passar os navegantes, pintadinho, pintadinho, entrou aqui e saiu do outro lado que eu vi, pau arriba, pau abaixo, terrendendengo. Caem dos altos novos redondelos..." A música será instrumental mas chamei meu pai (simbólico, não? filho-pai-avô) para recitar o refrão completo. Acho esse refrão bem peculiar e original.
Era uma vez um fazendeiro muito rico, senhor de
muitas terras. Na região o povo o conhecia como o “Coronel Atanásio”, por ser
ele orgulhoso e prepotente. Anexo às suas terras morava o Senhor Bonifácio,
dono de um pequeno sítio, porém muito bom. Em suas terras jorrava uma vertente
d’água, que o povo chamava de “o olho d’água do Seu Bonifácio”. Atanásio, como
era muito ambicioso, vivia fazendo propostas para comprar o sítio do vizinho,
porém ele não abria mão de jeito nenhum.
Seu Bonifácio tinha um filho, Epitácio, que dizia ter
muita vontade de estudar e se formar advogado, até que o seu pai lhe falou:
— Se você quiser ir estudar na capital eu banco todas
as despesas. O meu sonho é ter um filho doutor. — Até que combinaram e o Epitácio foi para a
Capital e todos os meses o seu pai lhe mandava o dinheiro para as despesas. Mas Epitácio era muito preguiçoso e logo abandonou os estudos e levava uma vida
de farras, cercado de amigos. Sempre que escrevia para o pai, ou melhor, pedia
que os outros escrevessem, porque ele mesmo não sabia, dizia que estava indo
muito bem nos estudos e que só iria visita-lo quando estivesse formado. Tempos
depois, o seu pai lhe escreveu muito preocupado, dizendo que o Coronel Atanásio
estava movendo uma questão na justiça contra ele, querendo tomar as suas
terras, e se ele já tivesse condições viesse para resolver a questão, pois o
seu opositor já estava com cinco advogados trabalhando contra ele.
Epitácio recebeu a carta, pediu para alguém ler para
ele e ficou pensando no que iria fazer, porque não tinha nem aprendido a ler. Falou
do problema para um velho, que era seu amigo e que se prontificou a ajudar: Ele lhe deu um paletó bastante surrado e um
livro velho e falou:
—Tudo o que você quiser saber esse livro velho lhe
explica.
Epitácio pegou o caminho de casa a pé, porque não
tinha transporte. Caminhou bastante, até que se deparou com uma boiada, todos
os bois pertinho uns dos outros. Ele ficou impressionado, e pensou: “Esse livro
velho deve dizer o que vem a ser isso.” Abriu o livro em uma página qualquer e
falou: “Ah, achei! Tá aqui”:
— Campos grandes reunidos.
Fechou o livro, botou debaixo do braço e continuou a
viagem. Mais adiante passou numa porteira, deu um pé de vento e ela se abriu
sozinha. Ele passou sem precisar colocar a mão na porteira. Ele ficou muito
admirado e falou: “Esse livro velho tem que dizer o que vem a ser isso.” E
exclamou: “Ah! Tá aqui!”
— Campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes
pra passar os navegantes.
Fechou novamente o livro, botou debaixo do braço e
seguiu viagem. Mais à frente um lagarto correu por entre seus pés, entrou numa
furna de pedra, saiu do outro lado e foi embora. Epitácio ficou impressionado e
pensou: “Esse livro velho tem que explicar isso.” Abriu o livro e falou:
— Campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes
pra passar os navegantes. Pintadinho, pintadinho entrou aqui, saiu do outro
lado que eu vi.
Guardou o livro e continuou a viagem até que ouviu um
barulho. Era um pica-pau, subindo e descendo —
toc, toc, toc — em uma árvore. Ele achou muito interessante e consultou
o livro:
— Campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes
pra passar os navegantes. Pintadinho, pintadinho entrou aqui, saiu do outro
lado que eu vi. Pau acima, pau abaixo, terrendendengo.
Prosseguiu viagem. Já estava mais ou menos perto de
casa, passando por baixo de um coqueiro quando despencou um cacho de cocos lá
de cima e caiu quase em cima dos seus pés. Epitácio ficou muito espantado e
falou: “Esse livro velho tem que dizer o que significa isso”:
—
Campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes pra passar os navegantes.
Pintadinho, pintadinho entrou aqui, saiu do outro lado que eu vi. Pau acima,
pau abaixo, terrendendengo. Cai dos altos novos redondelos.
Caminhando mais um pouco chegou na casa dos pais. O
seu velho o abraçou, muito contente, e falou:
— Meu filho, ainda bem que você chegou, pois a
audiência já é amanhã, e eu não sei o que fazer.
E Epitácio:
— Sossegue,
meu pai, eu estou preparado por que der e vier. Nós vamos ganhar essa questão,
o senhor vai ver.
— Oxalá, meu filho! Não vai ser fácil!
No outro dia logo cedo foram para a cidade. O
Epitácio ia todo empolgado, metido no seu velho paletó de Casimira, surrado e
amarrotado, uns sapatos velhos fora de moda, parecia o Jeca Tatu. Chegaram ao
local da audiência, entraram, não pediram nem licença. Epitácio colocou o livro
velho sobre a mesa, cruzou os braços por cima, sentou na cadeira e ficou
calado. Os advogados olharam-no, entreolharam-se, até que um tomou a palavra e
falou para Epitácio:
— Excelência, nós somos cinco advogados e o senhor
está sozinho. Por favor, o senhor pode falar que nós queremos ouvir seus
argumentos.
Epitácio falou:
— Pois não, Doutor. — E, abrindo o livro:
— Campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes
pra passar os navegantes. Pintadinho, pintadinho entrou aqui, saiu do outro
lado que eu vi. Pau acima, pau abaixo, terrendendengo. Cai dos altos novos
redondelos.
Colocou o livro sobre a mesa, cruzou os braços e
ficou muito sério. Os advogados ficaram se entreolhando, todos pasmos,
perguntando uns aos outros: “Entendestes alguma coisa? Eu não entendi
patavina.” Até que o mais sabido da turma falou: “Eu só sei que onde esse homem
estudou, nós não servimos nem para tirar a poeira dos livros.” Ficaram
conferenciando uns com os outros, e não chegaram a nenhuma conclusão. O
fazendeiro Atanásio, já preocupado, perguntou aos seus advogados:
— O que vocês me dizem de tudo isso?
Os advogados responderam:
— Por nós a questão está perdida. Mas tem o Doutor
Herculano, que foi nosso professor, hoje desembargador aposentado. Se ele não
decifrar isso ninguém mais decifra.
O fazendeiro atrelou os cavalos em sua charrete e foi
procurar o professor Herculano. Falou-lhe que estava quase perdendo a questão e
que os seus advogados não foram capazes de decifrar o Bê-á-bá do seu adversário.
Após ouvir a história, Herculano se prontificou a ver o que poderia fazer.
Chegando à audiência o professor cumprimentou a
todos, e falou para o seu oponente: Excelência, por favor e obséquio, queira
repetir para mim o que o senhor falou para os meus ex-alunos, que eles não
foram capazes de compreender. O Epitácio já com cara de enjoado falou “pois
não, doutor”, e abrindo o livro velho falou:
— Campos grandes reunidos, abrem-se os travessantes
pra passar os navegantes. Pintadinho, pintadinho entrou aqui, saiu do outro
lado que eu vi. Pau acima, pau abaixo, terrendendengo. Cai dos altos novos
redondelos.
Fechou o livro, colocando-o na mesa, cruzou os braços
e fico todo posudo. O velho desembargador ficou pensando, matutando e
permaneceu calado por um bom tempo. O coronel Atanásio perdeu a paciência e
perguntou: “Doutor, o senhor entendeu alguma coisa?”
“Acho que entendi”, respondeu
o velho. O Atanásio falou, “doutor, o que ele quer dizer com esse ‘Campos
grandes reunidos’”? O velho respondeu:
—É que lá onde ele mora estão todos reunidos, porque
se ele perder a questão vem tudo a favor dele, e só Deus sabe o que vai
acontecer.
O fazendeiro indagou novamente:
— Doutor e esse “abrem-se os travessantes pra passar
os navegantes”?
— É porque quando eles vierem de lá pra cá, todo
mundo vai abrindo passagem pra eles.
O Atanásio já tremendo a voz, perguntou:
— Doutor e o que ele quer dizer com esse “Pintadinho,
pintadinho entrou aqui, saiu do outro lado que eu vi”?
—É que se eles não resolverem pelos meios
diplomáticos, vai ser resolvido no chumbo grosso.
Atanásio não cabia mais de terror quando perguntou
sobre o “Pau acima, pau abaixo, terrendendengo.” Ao que respondeu o Doutor
Herculano: “É porque se não for resolvido no chumbo vai ser na base do pau, aí
não tem quem aguente.”
— E o “Cai dos altos novos redondelos”?
— Aí é onde está o perigo, porque se eles não
vencerem no chumbo, nem no pau, vai ser na base da bomba, aí não escapa
ninguém!
O Doutor Herculano então arrematou:
—É melhor o senhor fazer as coisas do jeito que ele
quiser, porque se não o caldo vai engrossar pro nosso lado.
E o Atanásio:
—Eu faço qualquer acordo, vai ser do jeito que ele
quiser.
E, chamando o Epitácio, falou:
—Doutor, nós reconhecemos que perdemos a questão, o
senhor nos desculpe as injúrias, e tudo mais, que eu vou pagar todas as custas
do processo e vou lhe dar quinze contos de réis.
— É pouco. — Respondeu o Epitácio. — O Senhor vai me
dar vinte contos e o travessão da nossa terra quem vai comandar sou eu.
O Atanásio respondeu:
— Não se preocupe, vai ser tudo do jeito que o senhor
quiser.
Epitácio recebeu o dinheiro, colocou numa mochila e
voltou para casa junto com seu pai. Chegando lá mataram umas galinhas e fizeram
um bom almoço, regado a boa pinga. Descansaram bastante e, no outro dia logo
cedo, foram para a casa do coronel Atanásio, onde já se encontrava o topógrafo
ou agrimensor, como chamavam na época. O Epitácio falou: “Aqui eu não quero
massada, nem reclamações.” “Pois não, doutor”, respondeu o fazendeiro Atanásio.
Foram para o campo e Epitácio olhou, olhou e mandou começar o travessão, já
tomando quase metade da terra do coronel. Prosseguiram e mais a frente tinha um
terreno melhor. Epitácio falou:
—Vamos desviar por aqui.
O Topógrafo
contestou: “Não pode entortar o travessão.” E Epitácio: “Não pode o que,
rapaz!” O coronel logo tomou a frente e disse: “Tem que ser do jeito que ele
quiser, não tem problema, eu quero é me ver livre dessa enrascada.” Terminaram
o serviço e o Epitácio voltou para casa junto com seu pai, os dois felizes da
vida.
Entrou por perna de pinto e saiu por perna de pato,
quem quiser melhor do que essa que invente e conte outra.
*Literatura oral contada por Francisco Benedito da
Gama e escrita por seu filho, José Benedito Sobrinho.
Para abrir o formulario de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario: