A medicina é certamente o caso mais exemplar dessa degradação profissional, agravada por um detalhe: sua conexão a interesses econômicos colossais
A crise moral que consolidou, entre nós, a religião do dinheiro e a servidão do trabalho mercenário deletou do exercício profissional o senso de missão que no passado elevou algumas profissões ao nível de sacerdócio. À vala comum da competição predatória foi atirada a dignidade do ofício e do salário.
Os códigos de ética caducaram e hoje não significam mais que um componente ritualístico em solenidades de formaturas que dizem pouco sobre a capacidade técnica dos formados e menos ainda sobre o seu espírito de serviço.
Respeitadas as exceções, a medicina é certamente o caso mais exemplar dessa degradação, agravada por um detalhe singular: o fato de ela estar interligada a interesses econômicos colossais. Um destes, a indústria farmacêutica, a mais poderosa e lucrativa do mundo depois da indústria de armas, praticamente guia e recicla médicos e parte das escolas de medicina. E, sem pudor, desvirtua o exercício da profissão com a distribuição de jabás e favores que estão por trás de muitos diagnósticos e receituários de uma prática focada na doença e não na sua prevenção. Outro é o chamado plano de saúde, cuja massificação do atendimento faz do trabalho do médico mero esforço mecânico em uma linha de produção.
É óbvio que o funcionamento dessa engrenagem imoral e a ganância de profissionais aéticos pedem uma concentração de clientela e de negócios só possível nos centros urbanos superpovoados. Ao interior, as moscas ou as anomalias constatáveis de norte a sul.
Ou seria normal uma prefeitura pagar até 16 mil reais de salário e conceder até quatro meses de férias a um médico recém-formado em troca de um expediente de 40 horas semanais que muitos não cumprem, ou porque dedicam metade do tempo a clínicas particulares que se apressam a instalar nos municípios que os acolheram ou porque passam metade da semana nas capitais, faturando em seus consultórios?
Considerar essa realidade da medicina brasileira nos leva a entender o porquê da gritaria corporativista contra a anunciada importação de médicos cubanos para amenizar a escassez de profissionais nos grotões do Brasil.
Os cubanos alcançaram a excelência na área da saúde apostando em medicina preventiva e atendimento familiar. Isto é eficaz: o povo cubano é saudável. Seu modelo de medicina é elogiado pela Organização Mundial de Saúde e atrai estagiários da Europa e mesmo dos Estados Unidos. Mas...
O modelo cubano é barato. Dispensa tantas drogas e o uso abusivo de tecnologias. Seus médicos, bem assistidos pelo governo, tem casa e transporte, mas não tem ganhos financeiros estratosféricos. A medicina cubana ainda tem um traço missionário.
Trazer essa gente para aqui, pelo menos do ponto de vista das corporações, é um péssimo precedente.
[Publicado na edição de 14/05/13 do Novo Jornal]
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Comentários
Herverton Freitas, 14/05/13 - Jomar Morais põe o dedo na ferida no artigo de hoje no NovoJornal. Essa a diferença entre jornal e rede social.
Jomar Morais, 15/05/13 - Ferida crônica, meu caro Herverton. Abraço!
Marcos Antônio Bezerra, 15/05/13 - Li no Planeta Jota e concordo com tudo que você escreveu, Jomar. (via Facebook)
Jomar Morais, 16/05/13 - Obrigado pela leitura e por seu qualificado endosso, caro Marcos Antônio.
Denilson Maia, 15/05/13 - Jomar, adorei o artigo. Alguns ex-alunos meus (hoje, estudantes de medicina) fizeram críticas a uma matéria que postei falando sobre esse medo dos médicos cubanos no Brasil. Como estudantes de medicina, já seguem o que dizem as corporações... (Via Facebook)
Jomar Morais, 16/05/13 - Caro Denilson, grato pela leitura e pela msg. A verdade é que o espírito de serviço deveria sempre ficar um degrau acima do espírito corporativo, mas o nosso egoísmo quase sempre não permite.
Thales Gleyson, 15/05/13 - Meu amigo e irmão querido, seu artigo é de uma sinceridade e lucidez riquíssimas!(via Facebook)
Jomar Morais, 16/05/13 - Caríssimo Thales, muito grato pela leitura do texto, seu compartilhamento e pelo incentivo generoso.
Herbênia Ferreira, 15/05/13 - Vou compartilhar. Artigo brilhante, lúcido e muito oportuno nesse momento! Valeu Jomar Morais!
Jomar Morais, 16/05/13 - Obrigado pela leitura e pela força, prezada Herbênia.