Por que teu amor nunca cessa de tecer disfarces com os quais mendigas minha atenção, quando és tu que me acolhes?
Senhor, meus pés têm marcas da longa peregrinação e eu julgava-me repleto de tuas máscaras ternas, exibidas na diversidade dos templos e monumentos, na fé multicolorida de meu povo, nos repetidos êxtases em orações e recolhimento.
Não eras tu que, invisível, tocavas-me o coração e dissolvia minha concretude?
Sim, eu percebi que estavas por perto. Bem a teu gosto, puxavas-me o tapete de minhas referências, deixando-me nu e criança nos recantos de teus amados.
Não fostes tu que me inspirastes as ousadias nas casas de Francisco e de Dulce, no berço de Bezerra, nos túmulos de Damião e Chico, no horto de Cícero, na caatinga do Conselheiro, no terreiro de Meninha, na montanha da Senhora Aparecida?
Eu estava pleno e grato, transbordando alegrias e insights. E, no entanto, tu, Senhor da arte do imprevisto, guardavas na manga a carta final desse sublime jogo de devoção e entrega.
Por que aqui?
Por que agora, que a peregrinação acabou, e me comprazo em saciar minha fome no restaurante avarandado, o som alto do forró pernambucano cortando a noite cálida deste domingo?
Evitastes minha mesa e buscastes a outro irmão. E outra vez fostes expulso pelos guardas.
Vi teus passos lentos, teus ombros curvados, tua resignação silenciosa e a inabalável esperança em teus pés plantados na calçada, à espera do óbulo.
Incomodado, ofertei-te a moeda, expressão de minha avareza (não serias digno de meu convite?). E, emocionado, vi o irmão, que eu julgara indiferente, repartir contigo seu alimento.
E vi, com uma clareza jamais acontecida antes, tua face real no terno olhar do mendigo, que até então eu não reconhecera. Teu Evangelho inteiro na expressão grata de um faminto!
O jovem negro e esguio afasta-se e sua silhueta se confunde com a noite. Minha alma está perplexa.
As fichas caem e, em meio ao som estridente e profano, tenho, afinal, a epifania que marcará esse mochilão em que te busquei em templos e celebrações.
Por que fizestes isto comigo, Jesus de Nazaré?
As lágrimas vêm, indiferentes ao meu entorno, e a consciência agora desperta me dá um choque de realidade. Outra vez fracassei, negando abrigo ao meu mestre! Outra vez mostraste-me o meu real tamanho na messe imensa da vida.
Tenta de novo, Senhor do imprevisto! Sou teu amado, és meu amado! Não desistirei!
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Fato ocorrido na noite do domingo 6 de fevereiro de 2022, no centro do Recife, um dia após o encerramento de meu mochilão "A Fé do Brasil", em Aparecida do Norte, SP.
Texto escrito em 08/02/2022, após a minha meditação matinal do Círculo de Silêncio e Paz. | Jomar Morais
É para ti e por tua causa que uivo.
Ergo-me para a vastidão escura,
Rolo na grama úmida,
Esmurro a rocha,
Caio no lodaçal.
Em êxtase.
Êxtase sagrado,
Êxtase profano.
Delírio de prazeres,
Delírio de dores.
E o solitário lobo, embriagado de teus feitiços.
Na luz e na sombra te escondes,
Espreitas-me com tuas quatro faces.
E quando eu, e não tu, mudar o rosto e partir
Contarás o meu breve enredo
A algum outro enfeitiçado pelos teus dotes.
Na tua ausência, perplexidade e ousadia.
De onde me espreitavas quando uivei
Junto às muralhas do poder?
Quando apenas metade de tua face
Deslizou, sóbria, para fora da cortina
Corri nas pradarias e estradas em buscas
Infindas e sem alvo.
Ainda assim operastes teus truques.
E, de novo, temi e ousei, chorei e sorri,
Uivei aquém e além do horizonte dos homens.
Enfim, na tua presença plena, despida e luminosa,
Perdi o senso e entreguei-me ao mistério.
E tudo pôde acontecer
Em indizíveis êxtases da carne e do espírito.
Ó Maya, por que me deténs em tua sedução?
Enquanto brilhas, na treva desta noite
Uivo de dor e de esperança.
Êxtase superlativo de luz e sombras
Na poeira das memórias.
Submissão.
Ó Cruzeiro, testemunha silenciosa!
Naquele longínquo 8 de maio
Meus olhos te perderam de vista,
Separados que fomos pela bruma espessa
E o clarão dela além das nuvens.
Ó Cruzeiro, que me vistes chorar no planalto e na planície,
No cerrado e junto ao mar!
Nesta noite de Maya plena e brilhante
Não deixarei que a sua luz argêntea me prive
De teu brilho discreto a chamar-me de volta
À realidade: Deus É, Deus basta!
[ Escrito ao despertar de um sonho, no meio de minha noite, ao meio dia de 01 de agosto 2020 ]
Que importam as palavras?
Que importam os conceitos?
Que podem as palavras dizer sobre a florzinha singela
Da erva invasora de meu quintal,
Que agora me encanta, transporta-me aos confins do universo?
Que podem as palavras dizer sobre os buracos negros do cosmo
E os buracos insondáveis de minha solidão?
Que podem os conceitos dizer sobre o brilho inefável
De meu êxtase enquanto me encantas, florzinha anônima desprezada?
Que podem as palavras ante o mistério da vida e do ser?
Que podem os conceitos ante o sem forma incognoscível?
Ó doce segredo no qual existo, o fundo mais profundo
Do fenômeno que sou.
Que importam as palavras?
Na alvorada deste meio-dia, silencio
E, então, vejo, reluzente, o que as palavras escondem.
Na florzinha vulgar Tu te mostras a mim.
És meu Tudo
E isso basta!