A ESCADA
Postado em21 Jun 2021 23 12 A FÁBRICA

Desde que conquistara a função de Gestor A32 Diretriz C, Eixo H, nunca se sentira tão extenuado física e mentalmente. Naquela manhã, seu organismo saturado, sequer, aceitou o desjejum. Como um autômato, dirigiu-se à Fábrica diante dos costumeiros olhares de admiração, reverência e, até, inveja das adjacências. Contudo, sentia-se tal qual uma rês a caminho do abatedouro.

No trajeto, foi tomado pela memória do pai: um homem inexpressivo, que jamais conseguiu descolar os pés do chão da Fábrica. Uma vida obscura, medíocre, sustentada numa cantilena usada como justificativa para si mesmo e para os outros: mesmo sem galgar um degrau na vida, nunca deixara faltar o sustento à família. Mas, com o unigênito crescendo, seus olhos vez por outra ganhava certo brilho e sua postura vergada, altivez. Isso, quando referia-se ao sucesso escolar do filho apontando para um futuro permeado por realizações que ele nunca experimentara. Morreu realizado. Em poucos anos, na Fábrica, o filho galgou inúmeros degraus da escada cujo topo se perdia no infinito. Mulher bonita, elegante e bem nascida; filhos inteligentes e competitivos; automóvel novo todos os anos; casa própria invejável e clubes fechados foram algumas das suas inumeráveis conquistas. Na Fábrica, avançava prodigiosamente, deixando atrás de si retardatários, alguns deles, cansados, arrastando-se penosamente enquanto ele vencia dois e até três patamares de uma só vez.  Suas rememorações cessaram defronte à sede onde parou, fitou demoradamente a imponente fachada e, meneando a cabeça, falou para si mesmo:

- Menino prodígio! Orgulho da família! Ao vencedor, o que mesmo? E eu lá sei!  

Além disso, também fora por muito tempo exemplo usado pela Fábrica na exortação aos demais para seguirem seus passos: vestindo a camisa, dando o melhor de si, enxergando a fábrica como uma família, vendo-se como peça fundamental das engrenagens. É certo que, por deixar o que estava além daqueles portões em segundo plano, sempre cumprira as metas abusivas que lhes eram impostas. Mas, com o avançar da idade isso estava perdendo-se no tempo.  

Reassumindo seu posto, lembrou-se de haver perdido as contas dos degraus vencidos ao longo das décadas. Contudo, para a Fábrica, assim como para todos, incluindo ele, importavam, apenas, os que ainda haviam para vencer. Olhou para o alto e apercebeu-se que, como no dia em que galgara o primeiro nível, o topo continuava perdido no infinito. Volveu o olhar para baixo. Tamanha era a distância separando-o do solo que os de lá pareciam formigas. E não só pareciam, como eram tratados como tais, pelos de cima, apesar do discurso oficial rezar o contrário. Sentiu vertigens e vontade de atirar pro alto o crachá e o fino terno que enchia os olhos dos entrajados de jalecos e macacões. Todavia, pelas metas com sua imperiosa e cotidiana necessidade de auto superação, pelo pai, pelos filhos e pela mulher, que tanto se orgulhavam dele, deveria seguir. E assim o fez, arrastando-se dolorosamente escada acima, enquanto jovens candidatos às alturas, com ares de triunfo e indiferença, o deixavam para trás. Aquilo era-lhe agudamente doloroso, mas, compreensível. Também agira assim nos verdes anos da sua glória.

Levado à exaustão generalizada pelos esforços inumanos, sangrava pelos poros da alma quando, desculpando-se com os entes queridos, a espera de compreensão pelo doloroso e inevitável ato, decidiu inverter o percurso iniciado nos primeiros anos da escola. Em vez do esforço hercúleo para galgar novos níveis, deixar-se-ia cair para o degrau anterior. Estava disposto a pagar o preço de, se necessário, chegar ao lugar de onde o pai nunca saíra. Fechou os olhos e, experimentando prazeroso alívio e uma, até então desconhecida, sensação de liberdade, pulou para o nível anterior. Mas, para surpresa sua, não havia degraus anteriores. Havia, apenas, um imenso vazio separando-o do chão da Fábrica. E, assim, deslizou vertiginosamente pelos ares custosamente conquistados ao longo de décadas e, em poucos segundos, atingiu o chão como um pacote disforme, ante a indiferença de alguns e a censura de outros.  

- Um fraco! Não soube aproveitar as oportunidades que teve. – Assim falavam às escondidas os colegas, os conhecidos, a família.

- Um bom pai. Mas, um perdedor que não deve servir de exemplo para vocês. - Falava a esposa aos filhos, empenhada em prepará-los para as alturas ainda mais altas.

Cabisbaixo e curvado sob o peso do fracasso, passou ele a vagar como um morto vivo pelo chão da Fábrica. Invisível para a maioria, experimentava o distanciamento dos próximos e a piedosa censura de alguns, por haver desperdiçado as bênçãos de prosperidade recebidas de deu$ (1).

(1) – O momento histórico em que se passa essa história possui similaridades e diferenças com o momento atual. Uma das diferenças é a grafia da palavra Deus.

Aldenir Dantas

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Mackenzie Melo
28 Sep 2021 23 41
Que paulada, Aldenir. Obrigado por nos fazer pensar e sentir a falta de Deus com a grafia mais aceita pela norma ética.
Aldenir
25 Jun 2021 18 43
Obrigado, amigo Jomar. Pela leitura e pelo apoio de sempre.
Jomar Morais
22 Jun 2021 16 42
Poeta Aldenir, sua flecha sempre acerta o centro do alvo, a mosca. Belo conto, triste realidade.
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