Só falta um
Postado em 13 May 2016 02 26 Textos Anteriores










Na teia universal, tudo interage o tempo  
todo. Na dimensão humana, influenciamos  
e somos influenciados continuamente.  


por JOMAR MORAIS


O canto dos pássaros nos galhos de minha goiabeira, na manhã invernosa, trouxe-me a lembrança de uma fábula narrada no livro Thus Spoke the Caribou (Assim Falava o Alce), do poeta e escritor alemão Kurt Kauter. O texto destaca o valor das pequenas ações para a construção de um mundo melhor e, sobretudo, para o estabelecimento da paz.

Vivemos tempos de egos inflamados, individualismo extremo e surtos paranoicos de acumulação e avareza que nos roubam a capacidade de perceber que, no universo, nada existe por si mesmo nem separadamente. Fazemos parte de uma teia infinita, o fluxo eterno em que todos somos causa e efeito se sucedendo sob o mistério da consciência. E, dessa perspectiva, não há como desconhecer a importância de um grão de areia ou de uma partícula subatômica, do voo de uma borboleta ou do pensamento de um homem. Na teia universal, tudo interage o tempo todo. Na dimensão humana, influenciamos e somos influenciados continuamente.

A ignorância e o medo, marcas de nossa cultura individualista e presunçosa, levam-nos a oscilar entre a lassidão e a sofreguidão que acompanham a delusão da impotência ou da megalomania. Em ambos os casos, estamos de costas para a realidade, entretidos com as pulsões egoicas, movimentando a roda do sofrimento. Perceber-nos parte do universo e considerarmos a relevância desse dado essencial da existência desperta-nos para o prazer de contribuir para a vida, perseverando no exercício dos dons que dela recebemos.

E, assim, a nossa ação diminuta e, não raro, anônima pode realizar a fábula singela de que nos fala o Alce:

- Sabes me dizer quanto pesa um floco de neve? - perguntou um pardal à pomba silvestre.

- Nada de nada – foi a resposta.

Nesse caso vou lhe contar uma história maravilhosa – disse o pardal. Eu estava sentado no ramo de um pinheiro quando começou a nevar. Não era nevasca pesada ou furiosa. Nevava como em um sonho: sem ruído nem violência. Como eu não tinha nada melhor a fazer, passei a contar os flocos de neve que se acumulavam nos galhos e agulhas do meu ramo. Contei exatos 3.741.952. Quando o floco número 3.741.953 pousou sobre o ramo – nada de nada, como você diz –, o ramo se quebrou.

A pomba, uma autoridade no assunto desde Noé, pensou um pouco e finalmente refletiu:

- Talvez esteja faltando só uma voz para trazer paz ao mundo.

Como o floco de neve da fábula de Kauter, cada um de nós também pode fazer a diferença com uma palavra ou o silêncio, com a presença ou com a ausência, com a altivez ou a tolerância, com a posse ou a renúncia, com o voto ou a abstenção.


[ Publicado na edição do Novo Jornal de 10/05/16 ]

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