COISAS DA ILHA

* Cheguei a Cuba durante a campanha para a eleição da Assembléia Nacional, cujos deputados escolhem o Conselho de Ministros e o presidente do Conselho, que é o chefe do governo. Nas ruas, nenhum outdoor. Na TV, nenhum programa eleitoral. Em áreas de maior circulação, encontrei currículos de candidatos afixados em vitrines. Os mesmos  mostrados pela televisão no intervalo de alguns programas. Lembrei da propaganda eleitoral imposta no Brasil pelo governo militar, nos anos 70, ante o crescimento do antigo MDB. Cubanos disseram-me que a escolha dos candidatos acontece livremente em reuniões de quarteirão e bairro.
A SEDUÇÃO DE CUBA
Um país romântico que atrai por sua beleza, simpatia e sua polêmica saga histórica
por Jomar Morais
Caminho no fim de tarde pelo Malecón de Havana. É um momento de beleza e poesia. O crepúsculo destaca os edifícios no semicírculo da baía, confrontando as ondas que se debatem contra o imenso paredão. Havana é romântica e, nessa hora, o Malecón - e, fora da orla, os muitos parques e praças da cidade - ficam repletos de crianças e de casais.

Havana é pobre e não adianta buscar aqui facilidades high-techs a que estamos acostumados. Inclusive a Internet, que na ilha é básica, cara e, na maioria das vezes, não funciona. Nem os hotéis de luxo de cadeias internacionais superam limitações como essa. Mas Havana consegue driblá-las com o charme de seu patrimônio histórico-arquitetônico, a mística do duelo de Cuba com o gigante americano e, sobretudo, com a simpatia de seu povo. Vale a pena conhecê-la e a toda essa ilha polêmica e desafiadora.

À primeira vista, Cuba nos parece parada no tempo. Havana, com 2 milhões de habitantes, choca pela deterioração de grande parte da cidade. E mesmo áreas rurais de rara beleza e boa qualidade de vida, como Pinar del Rio e Vinhales, nos causam a impressão de uma viagem ao passado.

Prender-se a isso, porém, seria avaliar Cuba apenas por critérios mercadológicos (e ideológicos), sem levar em conta sua saga histórica e sua opção por um modelo social que lhe parece mais justo e igualitário - um enorme desafio, tumultuado pelo jogo político interno e externo e, principalmente, pelo lado escuro da condição humana, hábil em sabotar toda utopia.

A importância estratégica de Havana no período colonial concedeu-lhe o privilégio da atenção e de investimentos espanhóis que a tornaram a cidade mais relevante do Novo Mundo. Nada disso, no entanto, beneficiou a massa de pobres e escravos de Cuba, cuja má sorte continuaria após a independência e a abolição da escravatura, nas décadas em que o país viveu sob orientação direta dos Estados Unidos.

Nesse tempo, Washington não só indicava candidatos a presidente, como pagava os salários dos primeiros mandatários de Cuba. Empresas americanas ditavam a economia e a máfia instalou uma sucursal em Havana, cujo marco era o luxuoso Hotel Rivera. Jogo e prostituição disseminaram-se, num ambiente de insensibilidade social e racismo contra a maioria crioula.

Acrescente-se a tudo isso a dura repressão policial do último presidente avalizado por Washington - Fulgêncio Batista - e se entenderá porque, há 54 anos, um punhado de jovens guerrilheiros conseguiu derrubar o governo e como Fidel Castro, atuando sobre o sentimento anti-americano e as marcas da discriminação social, pôde dar a guinada socialista, jogando dados no cenário da "guerra fria".

Garantir habitação, ainda que precária, alimentação básica, educação e assistência médica ainda hoje é a visão do paraíso para quem não tem acesso a esses direitos essenciais. Por essa segurança mínima e fundamental, os homens podem até abrir mão (por algum tempo) de liberdades individuais, não raro tisnadas de vil egoísmo.

Foi o que aconteceu em Cuba, com a sua revolução socialista. Mas aí, como em todo evento de tomada do poder pela força, logo manifestou-se outro lado da história...

O LADO B DA ILHA

Chego à praça da catedral de Havana no momento em que uma equipe de TV inglesa filma a exibição de um grupo folclórico. Quando o batuque cessa, do meio da multidão, alguém grita: “Levem-me para Miami. Agora eu tenho passaporte!” Não são poucos os cubanos que querem sair do país e experimentar uma vida com menos controle do estado. Mas é um equívoco achar que a maioria deseja uma virada radical.

Quando se rompem a desconfiança e o medo que cercam as relações entre cubanos e, principalmente, entre estes e estrangeiros se o tema é política, percebe-se que eles aprovam as conquistas sociais básicas do socialismo, que suprimiram a fome, o racismo e a discriminação social e universalizaram a saúde e a educação, mas acham que a vida pede mais que isso.

Há um descontentamento cada vez mais explícito com a burocracia e a incompetência que cerceiam voos de criatividade, limita horizontes, gera privilégios e perpetua a dependência da ilha, um ponto que fere o exacerbado nacionalismo dos cubanos. E, embora todos reconheçam o efeito devastador do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos - o qual afasta da ilha os transportadores, tornando fretes, preços e mesmo o comércio impraticáveis para os cubanos -, é ao estado que responsabilizam pelo desabastecimento crônico e pelo imenso descaso com o consumidor. Fora da cesta básica assegurada pelo estado, a vida é cara, muito cara para os cubanos e não há o que fazer, senão ir queixar-se ao bispo.

É incômodo também para um cubano admitir que seu país, até hoje, sempre sobreviveu à sombra de um provedor externo: a Espanha, depois os Estados Unidos, a falecida União Soviética e, atualmente, a Venezuela, que garante o petróleo, única fonte de energia de Cuba. O bloqueio americano e a incapacidade dos burocratas de gerir a economia (a infraestrutura econômica está praticamente destruída) mantiveram essa tradição que, no âmbito interno, acabou impedindo o crescimento e a renovação, combustível da cultura de transgressão velada que os cubanos adotaram como meio de sobrevivência.

Após cinco décadas de socialismo, Cuba enfrenta, além de uma crise econômica, uma crise de valores morais que sempre estiveram na base da virada ideológica. Devido aos baixos salários, até profissionais especializados em áreas técnicas estão migrando para o setor turístico, onde se sujeitam a trabalhar como faxineiros e ascensoristas na esperança de faturar mais com as gorjetas dos gringos. Outros se tornaram “jineteros”, os atravessadores que assediam turistas e que, não raro, se envolvem em trapaças e até crimes. A prostituição, que marcou o período da influência americana até 1959, voltou a mostrar a cara nas ruas de Havana (agora também na versão masculina), ao lado da mendicância, e cresceu o número de roubos e até de assaltos.

Cuba vive uma transição que, certamente, desembocará em mais abertura política e flexibilização das regras econômicas, como, aliás, já vem acontecendo sob o comando de Raúl Castro. O culto à personalidade do líder, uma marca da era Fidel Castro, cede à idéia de colegiado. Desaparecem os outdoors de exaltação socialista e, aos poucos, surgem incentivos ao empreendedorismo, como a abertura de pequenos restaurantes privados (os paladares). Há uma lenta flexibilização nos costumes e um desejo de dialogar mais com o mundo, a começar pelos Estados Unidos.

ISTO É CUBA
O Museu da Revolução,  a torre de vigia da antiga muralha  de Havana e o blindado em que Fidel lutou contra mercenários na Baía dos Porcos, em 1961
O Capitólio de Havana, imitação do de Washington e antiga sede do Parlamento cubano, após a revolução socialista foi transformado em museu
Torre da embaixada da Rússia, em Havana: símbolo de poder no tempo em que a União  Soviética  bancava Cuba e duelava com os Estados Unidos
A Casa de Las Infusiones, na Calle Mercaderes, em Habana Vieja, era o pub preferido de Eça de Queiróz, quando ele foi consul de Portugal em Cuba, em 1872
Show folclórico no largo da catedral de Havana para a TV inglesa desanda quando alguém protesta: "Levem-me para Miami, eu já tenho passaporte!"

JM no apartamento 511 do Hotel Ambos Mundos, onde Ernest Heminguay viveu em 1939: mobília da época e, ao centro, a Olivetti em que ele escrevia
O taxi triciclo é uma das opções mais usadas em Cuba, onde o sistema de ônibus é precário e ter um
carro com mais de 30 anos é privilégio de poucos
CORES E SONS
A alegria cubana na cidade e no interior
Cartazes como estes e outodoors de exaltação ao socialismo, com Fidel Castro em primeiro plano,  agora são raros nos edifícios e ruas de Havana

02/05/2013
Acima, pais levam seus filhos para pescar e apreciar o pôr-do-sol junto à fortaleza de San Salvador de la Punta. Ao lado, JM no bairro de Vedado, reduto da "classe média" de Havana e das críticas
ao governo.
Crianças a caminho da escola em Centro Habana: educação e saúde são áreas nas quais o governo
socialista garante atendimento bom e universal
Largo da igreja de São Francisco de Assis (hoje um museu) e JM diante do altar-mor da igreja de La Merces, onde o papa João Paulo II reuniu-se com religiosos: Cuba deixou de ser um "estado ateu" e tem até um Ministério das Religiões
Acima, JM na plantação de tabaco do agricultor Pepe, à direita, famoso pelos charutos que fabrica na hora para os turistas que vão a Vinhales. A região é uma das mais belas de Cuba, com suas montanhas, vales e cavernas, e apresenta alto índice de qualidade de vida, graças também ao turismo
Fábrica artesanal de rum em Pinar del Rio, cidade onde está uma das principais fábricas de charutos Cohiba (proibido fotos), os mais famosos de Cuba
CUBA E OS BRASILEIROS

A escolha do Brasil para início do périplo turístico-político da blogueira cubana Yoani Sánchez é significativa. Neste momento não há país mais influente em Cuba do que o Brasil. Nem mesmo a Venezuela, que praticamente garante a sobrevivência econômica da ilha com o fornecimento de petróleo a preço camarada. Qualquer brasileiro que viaje a Cuba pode constatar isso, e comigo não foi diferente.

O Brasil soa como unanimidade entre castristas e anticastristas e como um ideal de vida para muitos cubanos, em que pese seu nacionalismo apaixonado. Na verdade, os cubanos tem biotipo e perfil psicológico parecidos aos dos brasileiros e possuímos heranças africanas comuns, o que por vezes nos leva a achar que, estando em Cuba, estamos na Bahia. Nem mesmo no período em que uma Cuba marxista se declarava um estado ateu, Iemanjá deixou de comparecer todas as noites nas macumbas da santería, o candomblé cubano.

Laços culturais e até as novelas da Globo, que fazem sucesso na TV cubana, mantêm a proximidade entre nossos povos, mas não dá para esconder: é na política que ela se amplia e se fortifica desde a ascensão do PT ao Planalto.

Tive a sorte de chegar a Havana num momento de eventos que realçaram ainda mais esse aspecto da presença brasileira no país, como é o caso da 3ª Conferência Internacional para o Equilíbrio do Mundo, promovida pela Unesco, e das comemorações do 160º aniversário do herói da independência cubana José Martí, em janeiro passado. Estrela maior da conferência da Unesco, com um discurso crítico aos Estados Unidos, o ex-presidente Lula foi recebido com honras de chefe de estado e conduzido a visitar as obras do porto e complexo industrial de Mariel, a maior obra de infra-estrutura já realizada em Cuba, com financiamento do governo brasileiro, hoje a grande esperança da economia cubana. No mesmo evento, Frei Beto foi agraciado com um diploma de benfeitor da humanidade e, nas comemorações de Martí, o escritor Fernando Morais brilhou com o lançamento da edição em espanhol de seu livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria, sobre cinco cubanos detidos há 15 anos em Miami.

Apesar da presença em Havana de muitos políticos e intelectuais do continente, foram Lula, Beto e Morais que ganharam destaque na TV e no “Granma” e “Juventud Rebelde”, os principais jornais cubanos, editados pelo Partido Comunista, hoje reduzidos a tablóides de 8 páginas. Os três brasileiros são nomes populares em Cuba, onde até as pedras sabem que foi Frei Beto, amigo pessoal de Fidel Castro, quem o convenceu a desistir do ateísmo oficial e a promover a abertura religiosa na ilha.

Aqui, Yoani disse que, se quisesse, o governo brasileiro poderia contribuir mais para mudanças em Cuba. Pode ser. Se a morte de Hugo Chávez mudar os rumos políticos na Venezuela, Cuba terá ainda mais razões para apostar no Brasil.

Lula, o Brasil e a cultura brasileira são sempre destacados nos jornais e na TV de Cuba
Propaganda eleitoral em Cuba: currículos na vitrine e na televisão, como no Brasil dos anos 1970

* Cuba convive com duas moedas. O peso cubano, equivalente a 0,024 de dólar, é o dinheiro do cidadão. Serve para pagar salários, alimentos, transporte e outras despesas básicas. Nesse nível, a vida é muito barata para os cubanos, embora seus salários sejam irrisórios. O resto só pode ser adquirido com CUC, o cubano convertível, equivalente a  cerca de 0,80 de euro no câmbio oficial (fevereiro/2013), única moeda ao alcance dos turistas.
GENTE CAMARADA >>>

O povo cubano é bonito. Beleza negra, que espelha a maioria da população. Beleza morena, praticamente igual ao biotipo do brasileiro. Beleza branca, herdada dos espanhóis e holandeses que se instalaram na ilha, ao tempo em que era habitada  apenas por nativos, os índios - outra beleza refletida na gente cubana - de cujo idioma surgiu a palavra Cuba, que quer dizer terra do tabaco.

O povo cubano é saudável. Embora nas ruas apareçam alguns alcóolatras com sinais de desnutrição (não há consumo de drogas pesadas), a população, sobretudo, as crianças têm aparência saudável. O cubano é limpo e elegante, em que pese a simplicidade de suas vestes. É simpático e, geralmente, prestativo.

As mulheres são sensuais e, não raro, ousadas. Há muita liberalidade sexual. Em toda parte, homens saúdam a passagem de uma bela mulher com o gesto de dar um cascudo na palma da mão esquerda, o que significa... bom, você sabe. A homossexualidade já foi punida com prisão em campos de trabalho, mas hoje é, aparentemente tolerada, mas não organizada em movimento gay. Pode-se ver até travestis desfilando  em frente ao Capitólio, mas sob apupos de cubanos indignados com a cena, impensável nos anos de fervor revolucionário e repressão.

JM e o economista aposentado Arcádio Avalos,
ex-dirigente no governo municipal de Bayamo
JM e o agricultor Pepe, em Vinhales: produção de charuto artesanal e cafezinho na casa da fazendola
JM e a médica Janet Noa com o filho e o sobrinho: tour em Havana foi presente dela para as crianças
JM na pousada temática Mesón de la Flota, Havana: gentileza, mas preço 50% maior que no México
A  vendedora de amendoim no calcadão da calle Obispo: foto dela? Só se levar um pacotinho
Música cubana tradicional no restaurante em Vinhales: romantismo, ritmo e simpatia da banda
Jorge de Castro, 24/05/13 - Prezado Jomar, estive em Cuba, faz dois anos. Não tive a satisfação de fazer um périplo como o seu. Fiquei inicialmente em Habana e depois fui para Varadero. Portanto, não consegui sentir tanto a verdadeira Cuba, entrando em seu interior. Acho que Santiago de Cuba deve ser uma cidade com um astral diferenciado. Entretanto, mesmo sem a sua experiência, senti esse clima relatado tão bem por você. Achei Cuba fascinante! A maior emoção que senti foi na Plaza de La Revolucion. Há no ar algo espetacular! Cuba é fantástica na sua simplicidade.

Jomar Morais, 25/05/13 - Infelizmente, caro Jorge, também não tive a chance de ir até Santiago de Cuba e a Guantánamo, como desejava. Santiago é coração da Cuba negra, riquíssima em cultura e tradição. Espero voltar à ilha.
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Ano 23                                                                                                              Editado por Jomar Morais
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